Todos os pais lidam com esta situação, embora uns mais que outros. Na realidade, é inerente á grande maioria dos mais pequenos.
Inspirados na cara-de-pau com que o personagem infantil Pinóquio contava suas mentirinhas, enquanto o nariz esticava, dois psicólogos americanos divulgaram os resultados de uma pesquisa que avalia como as crianças tendem a misturar realidade e fantasia, um tema que sempre preocupou pais e educadores. Um grupo de 114 garotos e garotas de várias cidades do Estado de Michigan, em idade pré-escolar, submeteu-se a um teste dividido em três etapas. Na primeira, cada um deles foi colocado numa sala com um homem apresentado como senhor Ciência, que fazia divertidas experiências de laboratório.
Os pesquisadores produziram, então, um relato por escrito do que se passara, acrescentando detalhes fictícios: duas experiências que o senhor Ciência não havia feito e um suposto machucado causado na barriga da criança, quando ele tentava afixar uma identificação. Passados três meses, veio a segunda etapa. Os pais leram para os filhos a história com as modificações. Finalmente, depois de decorrido outro mês, os psicólogos pediram para que os pequenos contassem o que acontecera no encontro com o senhor Ciência. Nada menos que quarenta crianças (35% do total) citaram espontaneamente no mínimo um dos eventos fictícios como se eles tivessem sido de fato vivenciados. O episódio da barriga, por exemplo, foi descrito por dezessete dentre os participantes da pesquisa.
“Os relatos infantis passaram bem longe da exatidão”, constataram os pesquisadores Debra Poole e Stephen Lindsay, das universidades de Michigan e Victoria, interessados em evitar que crianças tenham seus depoimentos tomados como decisivos em julgamentos nos tribunais americanos.
Psicólogos de diferentes correntes concordam que a confusão entre fantasia e realidade é normal e faz parte de uma fase crucial do desenvolvimento, entre os 3 e os 7 anos de idade, mas alertam para a necessidade de que os pais combatam as mentiras deliberadas e arquitetadas pela criança para se livrar de alguma responsabilidade ou levar outro tipo de vantagem. A principal dificuldade da família é identificar quando os filhos estão de fato falando a verdade ou quando estão dando asas à imaginação. A melhor reação ao ouvir uma história cabeluda da boca da criança é não acreditar em tudo nem duvidar completamente. É preciso cautela para filtrar a realidade, tarefa que requer conversa paciente e boa dose de habilidade. Ela pode dizer que apanhou da professora no colégio, mas talvez tenha apenas ficado impressionada com uma bronca.
“Os pais só devem se preocupar quando a criança tiver o objetivo claro de fugir da realidade e não enfrentar determinadas situações”, diz a psicóloga Magdalena Ramos, coordenadora do Núcleo de Casal e Família da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O ideal é ficar no meio-termo, já que o excesso de fantasia pode revelar egocentrismo elevado e o oposto indica amadurecimento precoce. Na idade pré-escolar, as crianças aprendem a usar símbolos – trocam um objeto por outro, uma palavra por outra. “Se alguém fala sobre o Sol e a Lua e a criança imagina que o Sol é o pai e a Lua é a mãe, aquilo se torna uma verdade para ela”, exemplifica o psiquiatra e psicólogo Haim Grunspun, que há três décadas mantém em São Paulo um consultório especializado em crianças. Só mais tarde, por volta dos 7 anos, meninos e meninas começam a trocar a simbolização pura pela compreensão de uma linguagem mais elaborada. Ele ressalta que as crianças não são sempre boazinhas e muitas vezes mentem de propósito, com o objetivo de prejudicar alguém, especialmente se estão vivendo um momento difícil, como a separação dos pais. Podem, por exemplo, inventar que o novo namorado da mãe a agrediu, só para provocar reação do pai – uma tentativa ingênua de vê-los novamente juntos.
Numa idade mais avançada, ali pelos 10 anos, o emprego bastante freqüente de histórias fantasiosas, entretanto, pode revelar problema sério e ser diagnosticado como mitomania, a tendência doentia a mentir. Um dos indícios é a permanência do “amigo imaginário”, uma criação típica da faixa pré-escolar que tende a desaparecer com o convívio com outras crianças. Distúrbio similar é a síndrome de Munchausen, em que a criança finge doenças para chamar a atenção. “Percebemos a síndrome quando a criança começa a reclamar de dores sem explicação neurológica, como formigamento ao redor dos pulsos”, exemplifica Grunspun. A criança também costuma chorar sem motivo.
O tratamento da mitomania em consultório, depois de diagnosticada por meio de testes psicológicos, costuma prolongar-se por até dois anos e é feito com base na observação lúdica, ou seja, o psicólogo vê como a criança age livremente ao brincar, desenhar ou simplesmente conversar e a corrige gradualmente. A missão é deixar evidente a separação entre o mundo de verdade e o reino da imaginação, algo difícil de compreender para a criança que desenvolveu essa patologia. Contudo, na imensa maioria das vezes, a “imaginação fértil” da garotada indica um crescimento saudável, mas que exige a atenção de sempre. “Um menino sadio não sai voando pela janela achando que é o Super-Homem, mas nenhum pai deve deixá-la abertaesperando que isso não aconteça”, alerta Leila Cury Tardivo, do departamento de psicologia clínica da Universidade de São Paulo.